Rotina
Troquei os travesseiros de lugar esta noite e dormi de ponta-cabeça.
A escova e a pasta já estavam separadas ao lado do chuveiro quando decidi acordar.
O café, já frio, desceu pela garganta enquanto folheava o jornal antes de partir.
Com o diário sob os braços, dei tchau à mãe enquanto brincava com as pastilhas para dor de garganta que ela tomou para esquecer dos arranhões que lhe tiravam o sono.
Soube que ronquei à noite.
Desci a rua de casa e peguei o primeiro trem, que passou logo após eu chegar à plataforma.
Entretido com o jornal, vi pouca coisa acontecer naquele intervalo de 40 minutos até a outra cidade.
Quando cheguei à estação, me aproximei da porta e fui atrapalhado por um homem sem as pernas equilibrado sobre um skate.
Caminhei, peguei o táxi e vim para este lugar, lotado de referências que eu não tinha até dois meses atrás. Sei que daqui a 40 dias irei quase jogá-las fora.
É da vida.
Ainda não almocei.
Tomei dois copos de café e belisquei algumas bolachas.
Até a noite, outras coisas vão acontecer. Resta saber a quem interessa contá-las.
A cidade em preto e branco
São Paulo é tão absurda que estratifica até mesmo suas torcidas.
Um sãopaulino pode até viver na periferia, mas a empáfia da elite que comanda seu time contamina seus sócios dos grotões.
O palmeirense ultrapassa os limites da gigantesca colônia italiana, sem nunca deixar de desfraldar o orgulho pela distante reunificação peninsular, que de fato é anterior à chegada daqueles que cantarolam nosso sotaque.
No cume ou no fosso, o Corinthians é a massa agregada e desamparada, que sobrevive de esperança. De branco e de preto, eles não sucumbiram à queda e deram de tomar conta da cidade, ao ponto de encobrirem qualquer outra massa.
É extraordinária a movimentação, sobretudo em ruas e trens lotados. Em qualquer lugar um sobe a voz para gritar pelo time.
Um movimento tão impressionante que parece trazer de volta todo aquele clima que antecedeu à final de 1977. As bandeiras estão pelas lajes, pelos carros, cobrindo ombros. No supermercado, parece que o dia de compras foi reservado aos alvinegros.
O preto e o branco tingiram a cidade.
Escolha não escolher
Ha-ha, ora, ora, a ordem pessoal. Os corações de pedra só balançam sob o fogo do desespero. Pedra = gelo. Ora, tentem aquecê-los. Claro que sob a névoa de uma sexta-feira à noite, 12 graus e garoa fina entre as esquinas da Brigadeiro e da Augusta, sem o céu de Ipanema para enfeitar essa cidade suja, é mais difícil driblá-lo.
Certo, então corrompa as nuvens de pensamento enquanto assiste a um filme duro. Tente blindar o que sente quando sair à rua, trôpego de dor. Esqueça o ônibus que só deve surgir quando faltar cinco minutos para a 1h da manhã. Talvez ele não venha.
Junte os cacos do seu estômago enquanto ele balançar e seu corpo saltar sobre as lombadas. Não pense. Abra a cerveja da solidão, belisque o aperitivo da dor. Com o joystick na mão, drible a vontade de ter quem não mais te quer.
Esqueça os CVVs pessoais. Arrume um emprego. Ou faça como o Renton, de "Trainspotting": escolha não escolher a vida.
Prefira os livros de Irvine Welsh.
Amigos reais, virtuais e imaginários
Um pôster é o melhor amigo de Sam, o protagonista do novo romance de Nick Hornby, “Slam”. O herói adolescente do primeiro livro juvenil do escritor está a léguas dos exemplos que o povo de 15 anos deseja seguir, mas a relação diz muito sobre a solidão dos adultos.
O Tony Hawk pendurado no quarto ouve e diz o que quer, baseado nas memórias escritas em um livro anterior da lenda do skate. É a base do garoto, que vê os amigos como portas pouco dispostas a ouvi-lo. O “slam” é o tombo que não cicatriza, e Sam não tem com quem dividir.
Tal qual um boneco de orelhas descascadas que dividia minhas confissões antes de qualquer amigo de verdade aparecer, aos cinco anos. O imaginário aqui é mais real do que o real.
O tempo passa e sinto saudades do tempo que o cão laranja de orelhas despedaçadas estava disposto a saber o meu perde-e-ganha na vida, sem concessões. Não é à toa que canções que descrevem o desespero perguntam dos amigos —se é que eles existem, onde estão? E se estão, por que não nos ouvem? Parece até uma súplica a um deus que não existe.
O destempero é obra dessa ordem mal-formulada que corrompe o estômago antes de desabrochar. Uma ordem agressiva e solitária —talvez o que nos atordoa seja tão imaginário quanto essas amizades, por isso o ouvido dos outros não funcione. Quando o real é a ordem dos outros, que nos suportam quando damos ouvidos sem um abrir de boca para confissões.
O problema está em quem agüenta essas queixas. Ou não. Ou talvez amigos não sirvam para isso. Afinal, o que seria dos pôsteres se essa técnica realmente funcionasse?
O real da vida
Meus dedos não formigaram nem meu coração deixou de bater. Sinto que as coisas passaram e mais uma vez deixei de ver como elas acontecem.
Ou não acontecem, porque é assim que a vida vai funcionando —assim, sem funcionar.
Não vi sangue, não vi fuligem, não vi a barriga crescer nem mesmo meu teto desabar. O tal choque de realidade ficou para depois.
Depois, quem sabe, não seja mais.
A vida não passou pela minha frente e assim ela se esvai. Tal como a chama tratada por Neil Young e que ganhou eco em cartas de um cara aí.
Talvez ele tivesse razão. Talvez não.
Deixo o embaraço de apenas eu entender o que se passa aqui.
Mulheres são da Arena; homens, do MDB
Elas tramaram o golpe e tomaram o poder. Agora, não sabem o que querem com ele.
Eles nem se importavam. Em um primeiro momento, até as apoiaram –afinal, tudo estava um caos e era bom mesmo que alguém botasse ordem na casa.
Seguiram-se torturas e autosuficiências irritantes. A nossa participação até era aceita, mas sob rédeas curtas. No auge da crise, pedem nosso auxílio e ajuda, mas inventam biônicos para nos roubar mais um pouco de vida.
A gente não quer mudar muita coisa —só ter o nosso direito de decidir de volta. Nada muito radical.
Somos de uma ala autêntica de uma era rachada, bipartidária. Até os que defendem a abertura do leque sabem que o eixo nunca vai mudar —sempre sim ou não, esquerda ou direita, diretas ou indiretas. Em breve, vamos descobrir que falamos a mesma língua.
No fundo, somos dois partidos que se fundem num só.
A era da música é o passado
Os álbuns empilhados nas dez fileiras brancas na estante improvisada ultrapassam o milhar. A eles, somo discos velhos de vinil, alguns empoeirados e riscados, em que os sulcos entre as músicas cumprem a tarefa de engolir o ar para a próxima música.
Assim é a vida. Intervalos de uma faixa a outra de vinil velho, a agulha estourando pequenos algodões de sujeira. Cada trecho, intervalo de três minutos entre primeiros e últimos acordes. Um estouro de bateria, no começo ou no fim. Cápsulas de memória.
Das caixas de som, surge "All my Friends". São seis minutos, em crescendo, de uma visão amplificada de quem procurou driblar o embaraço do cotidiano nos últimos anos e viu o tempo passar como se ele nunca existisse. Até se importar.
É o oposto do que se prega na adolescência, quando se quer viver tão rápido quanto possível. Um adulto inconseqüente veria cinco anos passarem como se fossem cinco dias. E há tempo a perder, sim.
Os sulcos do vinil rompem os segundos, são quase intermináveis, é importante que a faixa comece logo. Tem gente esperando. As razões de ontem são as desculpas de hoje.
Não há mais onde errar. Os seis minutos se vão. James Murphy e o LCD Soundsystem têm a mesma pergunta que eu: onde foi parar todo mundo? Não sei. O tempo é de enxugar a tristeza e ir buscar sem embaraço o pedaço de carne tirado à noite.
Enquanto isso, volto à estante para procurar outra trilha para estancar o sangue.